Sobre

Kristina Michahelles

Um continente a explorar

“Sou um continente que um dia afundará no mar, mudo” vaticinou Gertrud Kolmar em seu poema A indecisa (Die Unentschlossene). Deportada e assassinada em Auschwitz em 1943, esquecida durante décadas, ela é um vasto continente que vem sendo explorado e redescoberto. Mas não é mudo. É, sim, cada vez mais escutado em uma múltipla algaravia de vozes contundentes.

Li o primeiro poema de Gertrud Kolmar durante um encontro de tradutores em Paraty em 2012 e fui logo arrebatada pela explosão de emoções, erotismo, sonhos, dor, solidão e presságio da morte dessa poeta feminina na vanguarda do feminismo. Ao longo dos últimos anos pude imergir em sua obra e tive o privilégio de escutar reminiscências relatadas pela sua sobrinha Sabina Wenzel, bastante próxima da tia na primeira infância, antes de a família ser dispersada e desestruturada pela perseguição nazista.

O projeto de oferecer uma parte de sua vasta produção – em torno de 450 poemas – ao leitor brasileiro, no entanto, foi adiado – não por último, por uma espécie de acanhamento reverente diante de lirismo tão refinado e avassalador. Para lembrar a brutalidade do seu assassinato nas câmaras de gás do campo de concentração de Auschwitz, em março de 1943, trazemos agora uma pequena seleção, a ser ampliada ainda ao longo deste ano.

Existem poucas fotografias de Gertrud Kolmar. A mais conhecida é de 1928. Vamos mergulhar nesse rosto. Ela tem 34 anos, acaba de fazer um curso em Dijon, na França. Cabelos castanhos curtos, expressão séria. É extraordinária a semelhança dos grandes olhos negros com os de outro escritor judeu, Franz Kafka, nascido 11 anos antes. O mesmo olhar intenso, firme e sonhador, um olhar assustado de quem se sente excluído e desprezado, mas também o olhar de quem pressente, profetiza e teme se perder. Tudo é absorvido “com esses olhos, dos quais cada um é escuro, e uma estrela” (A abandonada, de 1933).

Lida cronologicamente, a produção literária – inicialmente marcada por cantigas infantis e um romantismo sonhador – revela um caminho que parte de uma infância feliz e despreocupada numa família judia assimilada próspera e culta em Berlim, onde a religião não tinha um papel preponderante, e desemboca em sucessivos dramas: o abandono amoroso, o aborto forçado, humilhação e exclusão na era nazista, atração pelo universo da cultura hebraica, antevisão da morte e a catástrofe final do assassinato pelo regime fascista.

Natureza, crianças e mulheres dominam a temática da sua obra. A visão romantizada e quase idolatrada da criança na primeira fase da obra cede ao sofrimento depois do aborto a que precisou se submeter (ver texto de Marcus Tulius Franco Morais). Homens são antagonistas e raramente participam de situações ou ações descritas nos poemas. Não entram na esfera feminina de alegria, dor e solidão. Mulheres geralmente são personagens miseráveis e excluídas, como a velha solteira, a malabarista, a ladra, a feia, a catadora de trapos, a estrangeira, a abandonada, a indecisa, a louca, a bruxa, a desprezada – e a judia. Em toda essa vida à margem, no entanto, há poesia, há beleza. E a perspectiva da sociedade e da coletiva vista da margem é impiedoso e inclemente.

Intenso e implacável é também o erotismo que permeia principalmente os poemas do meio da vida, expresso em cores, metáforas e formas inusitadas e corajosas para a época. Mas são sobretudo os escritos da maturidade que abalroam o leitor com sua carga trágica e intuitiva, marcada pela crescente consciência da identidade judaica. Em tempos de perseguição, a ancestralidade judaica é percebida como distinção, fonte de orgulho e, segundo a biógrafa Johanna Woltmann, de energia para resistir a tantas privações, exclusões e humilhações.

No poema Die Kröte (A rã), de 1933, depois da tomada do poder pelos nazistas, o animal não se defende contra o seu assassino, mas o convida a matá-lo: “Vem e mata! / Ainda que, para ti, eu seja um bicho nojento / Sou a rã / E carrego a pedra preciosa.”

Komm denn und töte!
Mag ich nur ekles Geziefer dir sein:
Ich bin die Kröte
Und trage den Edelstein…

Explorar este continente chamado Gertrud Kolmar não é uma aventura corriqueira. Exige disposição para correr risco, encarar a dor e o sofrimento e o confronto com a certeza da morte. A recompensa é um lirismo infinito, uma experiência emocional em inúmeras camadas.

Kristina Michahelles é jornalista, tradutora literária e diretora executiva da Casa Stefan Zweig de Petrópolis.

Marcus Tulius Franco Morais

Gertrud Kolmar: corpo lírico no limbo

[…]
“Onde para nós era ainda a noite,
tu já vias a eternidade.”

Nesses versos do poema “A clarividente” (Die Hellsichtige), Nelly Sachs apresenta-nos uma das mais líricas e profundas poetas do universo cultural judaico-alemão, mas que permanece no limbo do semiesquecimento. Essa voz extremada continua ignorada, mesmo na comunidade judaica ou israelense.

Vários gêneros literários fazem parte da obra de Gertrud Kolmar: lírica, prosa, teatro. Escreveu também inúmeras cartas. Se pouco a pouco emerge entre nós uma extraordinária floração de poetas judias de língua alemã, como Nelly Sachs, Rose Ausländer, Else Lasker-Schüler, Ingeborg Bachmann, Selma Meerbaum-Eisinger, Gertrud Kolmar é a menos conhecida, e permanece desconhecida em língua portuguesa; no entanto, sua prosa e os 450 poemas, salvos por Hilde Benjamin, cunhada de Walter Benjamin (primo de Gertrud Kolmar) e pelo cunhado Peter Wenzel, dão testemunho de uma escritura profunda e intensa. Ao contrário de outros e outras poetas “do desastre” que puderam escrever depois do Holocausto, ela desapareceu antes que seus traços marcantes chegassem até nós.

Desde fevereiro de 1993 há uma placa na fachada da casa número 37, na Ahornallee, em Charlottenburg, bairro berlinense, onde lemos: “Nesta casa Gertrud Kolmar passou a infância e a adolescência. Judia, foi levada ao trabalho forçado, em 1941, deportada para Auschwitz, em 2 de março de 1943, e lá assassinada”.

Gertrud Kolmar viveu afastada do mundo literário e dos debates estéticos de seu tempo. “Sou uma mulher triste há muito tempo”, escreveu. Sua obra carrega traços do começo do século, com imagens abundantes e um lirismo elegíaco. Sua poesia está marcada de trechos e intenções românticas e expressionistas, e bebeu nas fontes dos grandes poetas franceses e eslavos. Melancólica, às vezes desesperada, sua poesia destoa de seu tempo. Entre seus primeiros poemas românticos e as assustadoras imagens que compõem Mundos (Welten), toda uma biografia pode ser lida. Os poemas de Kolmar são os filhos que ela não teve. Foram criados por ela ao longo de sua vida e carregam em si a vida que ela viveu. Seus versos são visões oníricas e se apresentam como o espectro de uma ameaça.

Com uma sintaxe singular, as frases vão se sobrepondo, ocultando o sentido das palavras sob uma vegetação rara. Gertrud Kolmar vive em um universo de metáforas. Seu lirismo se inspira também em fontes orientais; nomes míticos, mitológicos e bíblicos perpassam sua poesia. Na Alemanha nazista, Kolmar recolheu-se e viveu um exílio interior que traduz menos a oposição literária política, o protesto calculado contra o regime nazista, porém um estado de completo isolamento. Ela não convocou resistência contra o terror nazista, quase não o menciona. Em vez disso, revela-se em sua vulnerabilidade. O cuidado provocado é o consolo que ela oferece, pois mostra ao coração que ele é – ainda – capaz de sentir. Pior do que o reino do terror e do isolamento é o medo da desesperança e da insensibilidade. Gertrud Kolmar reivindica a “criação para a eternidade”. Ela toca o leitor através da magia e da metáfora, sensibilizando-o para um todo maior. Queixas, exigências e reivindicações se dão em nome das pessoas vulneráveis, desamparadas, das mulheres, das crianças, das criaturas vivas.

Gertrud Kolmar nasceu em 10 de dezembro de 1894, em Berlim, no seio de uma família judia de origem polonesa. Chamava-se Gertrud Käthe Chodziesner, tendo escolhido o pseudônimo Gertrud Kolmar em referência ao nome da cidade natal de seu pai, na Pomerânia, Chodziez, que passou a se chamar Kolmar. Seu pai, Ludwig Chodziesner, era um jurista renomado da época do Império Austro-Húngaro; a mãe, Elise, nascida Schönfliess, era tia de Walter Benjamin, um dos primeiros admiradores da obra poética de Gertrud Kolmar. Gertrud passou a infância no centro de Berlim, seu “paraíso perdido”.

Gertrud Kolmar estudou economia familiar, educação infantil e línguas estrangeiras. Ensinou francês e inglês. Atraída pela Revolução francesa, Napoleão e Robespierre fascinaram-na profundamente. Em 1917, publicou sua coletânea Poemas (Gedichte), pela Editora Egon Fleischel & Co., e o ciclo de poemas Napoleão e Maria, que trata do romance entre Bonaparte e a condessa Marie Walewska. Nessa época, uma tragédia marcaria sua vida para sempre: ela precisou fazer um aborto para atender as convenções da época, o que causou um profundo impacto emocional na vida da poeta. A culpa e a melancolia pela perda do filho têm um papel central em toda a obra de Gertrud Kolmar.

De Berlim, Gertrud seguiu para Hamburgo, e sua atração pela França a levou a Dijon, onde prosseguiu os estudos de intérprete. No centro de detenção Döberitz, em Berlim, trabalhou fiscalizando cartas de prisioneiros no final da 1ª Guerra Mundial. Admiradora de Romain Rolland e estudiosa da Revolução Francesa, redigiu um Portrait de Robespierre.

Em 1923, a família se mudou para uma casa no bucólico subúrbio de Finkenkrug, perto de Berlim. A casa, com seu jardim, árvores e animais, foi o refúgio de Gertrud Kolmar, possibilitando a ela observações da natureza, despertando-lhe sentimentos e impressões sensoriais. Dos seus poemas, ecoa uma voz de indignação e impotência, revelada por imagens simbólicas. Uma tristeza infinda transcende e clama por esperança para si própria e para toda a humanidade. A poeta mergulha sua pena nas tintas do Expressionismo para falar da atmosfera turbulenta dos seus dias. Os versos carregam traços do começo do século com seu lirismo elegíaco, marcado por intenções melancólicas, às vezes desesperadas, evocando imagens espantosas.

Em março de 1930, a morte da mãe a tocou profundamente. Nessa atmosfera de desalento, Gertrud Kolmar começou a escrever seu romance A mãe judia (Die jüdische Mutter), cuja feitura se estendeu até o final do inverno de 1930/31. A história se passa em Berlim, no final dos anos 20, e nos apresenta algumas chaves para o entendimento da obra da autora. Martha Wolg, uma jovem viúva judia, vive na periferia, em meio a jardins abertos e terrenos sombrios. Certa noite sua filha Úrsula desaparece. No dia seguinte, Martha a encontra em um terreno baldio. A criança, de cinco anos de idade, havia sido maltratada e violentada. Alguns dias mais tarde, no hospital, incapaz de suportar a visão desse corpo aterrorizado e prostrado, Martha envenena a filha. Para sobreviver a esse tormento, ela procura vingar a criança. A mãe judia revela o retrato de uma época através de uma mulher desolada.

Essa obra é uma fábula de lucidez trágica que ressoa como um prelúdio à loucura funesta do regime nazista. Pode-se perceber o barulho das botas que Gertrud escuta, em 1933, três anos depois da escritura desse romance.

Nesse mesmo ano, com a profunda cisão na vida literária e cultural da Alemanha, com a censura e a vigilância a todo tipo de manifestação artística, Gertrud Kolmar preferiu entregar-se ao estudo do judaísmo e de sua língua sagrada, o hebraico. Preferiu ficar na Alemanha, ao lado do pai, a fugir para a Suíça, para onde havia ido sua irmã mais nova Hilde, com a sobrinha Sabina. Em seu recolhimento, aguarda a chegada do mundo ignóbil que ela tanto havia pressentido em suas visões poéticas.

Nesse período, viveu uma angústia próxima à misantropia. Escreveu uma peça teatral intitulada Cécile Renault e 45 Baladas sobre Robespierre. Ao lado do pai idoso, seu passado se desdobra, abrindo caminho para o presente, como escreveu: O que passou era belo e jamais poderá perder seu esplendor nem sua força no cotidiano da vida.

A Noite de Cristal, de 9 a 10 de novembro de 1938 – ou a terceira Noite de Walpurgis, segundo Karl Kraus –, é um marco da destruição. À época, Kolmar era membro atuante da Associação Cultural Judaica. Durante essas noites, redigiu o esboço de Susana. Esse conto demonstra o antagonismo entre razão e irracionalidade, entre educação prussiana e destino judaico, na alma da poeta. De forma visionária, Gertrud Kolmar antecipa o próprio fim.

Gertrud Kolmar foi levada ao trabalho forçado em uma fábrica de cartonagem, em 1941. Seu pai foi preso em setembro de 1942, com 80 anos de idade, e deportado ao campo de concentração de Theresienstadt, onde morreu em 27 de fevereiro de 1943. As leis raciais de Nürnberg exigiram de Gertrud Kolmar a renúncia ao pseudônimo e acrescentaram “Sara” a seu nome, a fim de marcá-la como judia. Em março de 1943, foi deportada a Auschwitz no 32º Osttransport, “Transporte para o Leste”, onde, provavelmente, foi assassinada em uma câmara de gás. Seus manuscritos, textos datilografados e primeiras impressões de sua obra poética foram enviados ao exterior por ela em tempo hábil ou levados para as casas de parentes “arianos”.

Ignora-se o dia e o lugar exatos de sua morte. Há, no entanto, uma carta datada de janeiro de 1943, e um sinal de vida de 21 de fevereiro de 1943, últimos testemunhos da poeta. Em 3 de março de 1951, o cartório de Berlim-Schönefelde registrou-a como “Gertrud Chodziesner, sem profissão, solteira, de nacionalidade alemã, última residência na Speyrer Strasse 10, em Berlim-Schöneberg”, na lista de seis milhões de judeus assassinados. Ela é declarada morta sob o número 52095.

Nos anos 1960, Friedhelm Kemp e Johanna Woltmann organizaram a obra poética, a prosa e as cartas de Gertrud Kolmar para a Editora Kösel. Também pela Kösel, foi publicado o romance A mãe judia, em 1965. Hilde Benjamin, viúva do irmão de Walter Benjamin e Ministra da Justiça da República Democrática Alemã, foi a destinatária das últimas cartas de Gertrud Kolmar. Hilde e o cunhado de Gertrud Kolmar, Peter Wenzel, não pouparam esforços para manter vivo o legado de Gertrud Kolmar na Alemanha pós-guerra. O volume Cartas à irmã Hilde (Briefe an die Schwester Hilde) foi editado em 1970 pela Editora Kösel. O manuscrito do ciclo Das Wort der Stummen (A palavra dos mudos), de grande importância na obra de Gertrud Kolmar, foi publicado pela Editora Der Morgen, em 1978.

Johanna Woltmann organizou, em 1993, um material precioso para a Revista de Marbach, Gertrud Kolmar 1994-1943, e a primeira biografia de envergadura, Gertrud Kolmar – Leben und Werk (Gertrud Kolmar – vida e obra), em 1995.

       Em uma carta à irmã Hilde, escreveu Gertrud Kolmar:

       Hoje eu sei, mesmo sem os críticos, o valor que tenho como poeta… Que tive de pagar um preço muito alto para a realização de minha obra.

Marcus Tulius Franco Morais
Editor, tradutor e professor de alemão
Doutor em Estudos da Tradução: Teoria, Crítica e História da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Florianópolis, verão de 2023