Poesia
I Anseio (Sehnen)
Se te afastaste de mim –
Vem, amado, vem! –
Minha porta aguarda a tua mão –
Vem, amado, vem!
Não só eu anseio por um aceno –
Vem, amado, vem!
Meu tapete espera o teu pé:
Vem, amado, vem!
Não só a mim a solidão tortura –
Vem, amado, vem! –
Minha poltrona abre bem os braços:
Vem, amado, vem!
Não só o meu olho se umedece –
Vem, amado, vem! –
A lâmpada brilha tão pálida:
Vem, amado, vem!
Não só o meu rosto a dor descora –
Vem, amado, vem! –
Meu leito é mais branco que a neve:
Vem, amado, vem!
II Was war (O que foi)
Pelas vielas de alegrias passadas
minha memória vaga.
Algumas portas bem abertas,
algumas janelas tremem.
E as casas esperam, acenam,
uma ao lado da outra;
hera sempre verde farfalha –
mas eu passo.
Na moldura nua da janela
surge uma luz vermelha
e a cabeça de um homem.
Paro. Não posso mais seguir…
Nunca mais quero escutar
a batida do relógio,
Segurar com as duas mãos
o dia breve.
Outrora os ponteiros
pareciam retroceder;
para mim, o ardor do sol
ficou preso na lua.
E a cada hora eu me tornava
mais jovem, não mais velha.
Foi o que fez um grande mago
Uma boca estranha…
III Parábola (Gleichnis)
O lilás se inclina, murcho, em suave luto.
Orgulhoso, o espinheiro arde na tempestade.
Sorri sob mil chagas sangrentas.
Assim é o amor que encontraste em mim.
Entregou-se, suave, a ti, como lilás branco,
olha-te agora como o espinheiro, ardente.
Tradução: Kristina Michahelles
A abandonada (Die Verlassene), escrito por volta de 1917, integra o “Ciclo dos primeiros
poemas I” (Früher Zyklus I): In Memoriam 1918, publicado postumamente. publicados no volume Poemas (Gedichte), pela Editora Egon Fleischel & Co., Berlim, 1917.
Para o dia
Trago com zelo, coberto de veludo negro,
Meu sonho de olhos arregalados
Da noite
Da noite
Não me conduz a velha escada deteriorada
Outrora fluí no balanço do berço dourado
Para o dia
Tradução: Kristina Michahelles
Da noite (Aus der Nacht), escrito por volta de 1918, integra o “Ciclo dos primeiros poemas I” (Früher Zyklus I): In Memoriam 1918, publicado postumamente.
Para Leste envio o meu rosto:
quero afastá-lo de mim.
Que fique do outro lado, na luz,
para descansar um pouco
do meu olhar para esse mundo,
do meu olhar para mim,
o muro bruto, dinheiro cotidiano,
a roda agitada que te pressiona.
O mundo em vermelho e cinza carrega
por entre escombros de lamúria e fumaça
os eleitos, gotas de orvalho
num caule de trigo.
Uma trajetória brilhante e rápida,
um aperto de mão grande:
uns foram devoradas pelo meio-dia,
outros engolidos pela areia.
Por isso serei alegre e quieta,
depois de cumprir o meu dever;
em mil pequenas águas
quero fluir com o cisne,
sem conversa ou ruído
e sem pensar
um animal, mudo, um animal bonito,
nem espírito, nem símbolo.
E se, depois, serei apenas uma leve brisa
em pálidas margens
rolarei num dia de inverno cedo
o sarcófago prateado frio
da morte eterna.
Lá dentro, meu rosto, fino e leve
tal teias de aranha,
roça um pouco os cantos,
oscila um pouco, empalidece sorrindo,
e se dissipa sem dor.
Tradução: Kristina Michahelles
Despedida (Abschied), escrito entre o outono de 1927 e o final de 1932, integra a
coletânea Mein Kind [Meu filho], publicado postumamente.
Quero envolver-me na noite feito manto quente
com sua estrela branca, com sua maldição cinza,
com sua cauda ao vento afugentando corvos diurnos,
com suas franjas de bruma úmida de lagos solitários.
Suspensa na viga, rija feito morcego,
caio solta no ar, pronta para voar.
Homem, sonhei teu sangue, te mordo, te firo,
agarro-me aos teus cabelos, te sorvo a boca.
Acima das torres foscas, os cimos do céu são negros.
De seus troncos nus goteja resina vítrea
em taças invisíveis, qual vinho do Porto.
Nos meus olhos castanhos resta a imagem refletida.
Com meus olhos castanhos dourados quero ir à caça,
pegar o peixe nas valas que há entre as casas,
pegar o peixe dos mares: o mar é um vasto lugar
com mastros quebrados, tesouro de prata naufragado.
Os sinos pesados do barco ressoam do bosque de algas.
Entre as carrancas do barco, uma, de criança, se espanta,
nas mãos o limão e na fronte uma luz.
Entre nós, as águas; eu não te guardo.
Atrás da vidraça gelada ardem lâmpadas coloridas,
colheres brilhantes mergulham nas taças, sorvete colorido;
eu fisgo com frutas vermelhas, com lábios de fruta,
e sou uma pequena iguaria em um cálice de noite.
Tradução: Marcus Tulius Franco Morais
Metamorfoses (Verwandlungen) – escrito entre o outono de 1927 e o final de 1932, integra a coletânea Mein Kind [Meu filho], publicado postumamente.
Estou no escuro e só.
Mas a meu lado, a porta encostada.
Se a abro, a luz me inunda.
Ali há um pai, mãe e as irmãs,
um cão que fala, mudo e gentil.
Como posso mentir e como dizer
que fui empurrada para as trevas?
Eu mesma me levei embora de tudo.
Diante dos meus olhos florescia a neve.
Eu vi que ele inclinou o caule para mim,
Para a minha juventude, e doeu.
Não tinha nada para consolar com a idade
meu coração, que soava jovem e vermelho como fruta,
acostumá-lo ao frio pálido.
Então chorei muito e me fui.
E achei o homem numa encruzilhada,
fiquei quieta e amei e concebi.
Em mim cantou um violino,
no início tão doce, tão suave.
Agora já não canta, quando me calo.
O medo veio com suas mãos manchadas,
acocorou-se a meu lado, tateando o meu corpo,
carregou um esgar: “Não tens vergonha”?
“Onde está o anel de mulher no teu dedo?
Temes ladrões, escondendo-o bem.”
Minha mão direita, nua, vale menos?
Tão pobre, tão nu, logo também
se desvencilhará do meu ventre.
E quando o penso, contrai-me.
Agarra-se a mim e me faz tremer,
como a tormenta liberta a árvore no campo nevado
De suas últimas lantejoulas enferrujadas.
Assim, em mim, varre o que é fino e ralo,
a pequena agonia, prazer astuto,
e rompe o botão da grande dor.
Da grande alegria. Ó, quero te parir
como um animal, e ser feliz! –
Acharei garras que afiam uma faca…
Mas é noite. E há algo que é a desonra,
não posso te parir.
Conheço o trem que rasga a floresta.
Para lá eu vou, até os trilhos brilhantes.
Fico cansada e me deito, feliz,
atravessada em dois bastões de ferro.
Tradução: Kristina Michahelles
A abençoada (Die Gesegnete), escrito por volta de 1933, publicado postumamente na antologia poética Weibliches Bildnis [Imagem feminina].
Para K.J.
Enganas-te. Achas que estás distante
e que tenho sede e já não posso te encontrar?
Eu te toco com meus olhos,
esses olhos, dos quais cada um é escuro, e uma estrela.
Arrasto-te para baixo dessa pálpebra
e a cerro, e estás todo dentro.
Como queres sair do meu pensamento,
da rede do caçador, que nada deixa escapar?
Não me deixas mais cair da tua mão
como um buquê murcho,
que cai na rua, defronte à casa,
pisado e empoeirado por todos.
Amei-te. E tanto.
Chorei tanto… com súplicas quentes…
E te amo ainda mais, pois sofri por ti,
quando a tua pena não me escreveu mais carta alguma.
Te chamei de amigo e senhor e guardião do farol
no istmo estreito,
jardineiro do meu pomar,
e se mil foram mais sábios, nenhum é mais justo.
Mal percebi que se rompeu o porto
que segurava a minha juventude – e pequenos sóis
gotejaram, perdendo-se na areia.
Fiquei parada, olhando para ti.
Tua passagem ficou nos meus dias
como perfume se conserva num vestido
que não conhece, não conta, só recebe,
para sempre usá-lo.
Tradução: Kristina Michahelles
A abandonada – para K.J. (Die Gesegnete, für K. J.), escrito por volta de 1933, publicado postumamente na antologia poética Weibliches Bildnis [Imagem feminina].
Na minha cela a luz arde a noite toda.
De pé, na parede, não posso dormir;
Pois de dez em dez minutos vem um guarda me vigiar.
Faço vigília na parede. Sua camisa é marrom.
Os outros voltam, conversam
com meus gritos e gemidos, riem de mim,
puxam meus braços com força, chamam de esporte.
Desabo de joelhos … e finalmente se vão.
Não vi árvores, sol – existe isso?
Será que uma pobre criança ainda ama o seu pai?
Nenhum sinal, nenhuma carta, mas tenho mulher!
Disseram: “És vermelho, vamos te deixar roxo”.
Chicotearam com bastões de aço e meu dorso estava nu…
Ó Deus! Ó Deus! Não, não! Não tenho fé,
Não orei no campo, no hospital de campanha,
só pequeno, à noite, a mãe sentada na cama.
A terra é um cárcere, o céu um buraco azul.
Ouves? Te renego! Meu Deus… ah, me ajuda!
Não existes: se existisses, terias piedade.
Jesus sofreu para todos vocês; eu sofro só para mim.
Em pé, afundo com água e pouco pão
horas e mais horas. Como é boa, como é boa a morte!
Deitar… e trancado em um poço fundo e escuro,
sem lâmpada ofuscante. Só sono. Só calma. Noite…
Tradução: Kristina Michahelles
O torturado (Der Misshandelte), escrito em 1933, integra a coletânea “A palavra dos mudos” (Das Wort der Stummen), publicado postumamente na antologia poética Welten, Berlim, Suhrkamp, 1947.
Eu venho da escuridão, uma mulher.
Trago um filho e já não sei de quem;
outrora o soube.
Mas agora não há homem para mim…
Todos submergiram atrás de mim como um fio d´água
que a Terra bebeu.
Eu ando, sigo avante.
Pois quero alcançar as montanhas antes do dia, e os astros
já esvanecem.
Eu venho da escuridão,
escuras vielas atravessei solitária,
quando a luz súbita, com suas garras,
o suave negrume,
rasgou,
A onça, a cerva,
e uma porta escancarada
cuspiu gritos feios, selvagem
algaravia, rugido animal.
Bêbados se reviravam…
Sacudi tudo no caminho da bainha do meu vestido.
E atravessei a praça erma do mercado.
Folhas boiavam em poças, refletindo a lua.
Cães magros, vorazes, cheiravam dejetos nas pedras,
frutas apodreciam pisoteadas,
e um ancião em trapos ainda torturava seu pobre instrumento de cordas
e cantava com voz mirrada e desafinada
sem ser escutado.
E essas frutas outrora amadureceram ao sol e orvalho,
sonhando ainda com perfume e fortuna da flor amorosa,
mas o mendigo lamuriante
já esqueceu tudo e não sabia de mais nada além de fome
e sede.
Diante do palácio dos poderosos eu me detive,
e quando pisei no degrau mais baixo
o porfírio vermelho-carne escaqueirou sob a minha sola. —
Eu me virei
e olhei para cima, para a janela vazia, a tardia
Vela do pensador
que meditava, meditava e nunca encontrava a salvação da sua pergunta,
e para a lamparina velada do doente
que, porém,
não aprendeu
como devia morrer.
Sob o arco da ponte
dois esqueletos horríveis brigavam por ouro.
Ergui minha pobreza como um escudo cinza diante do meu rosto
e segui, ilesa.
Ao longe o rio fala com suas margens.
Agora tropeço pela senda pedregosa, recalcitrante.
Pedregulhos, arbustos espinhentos ferem as mãos que tateiam às cegas:
Uma gruta espera,
e na sua mais profunda fenda abriga o corvo verde metálico
que não tem nome.
Ali entrarei,
protegida pela sombra das grandes asas, vou-me acocorar e descansar,
crepusculando, escutarei a palavra muda e crescente do meu filho
e dormirei, a frente inclinada para Leste,
até o sol nascer.
Tradução: Kristina Michahelles
Do escuro (Aus dem Dunkel), escrito entre 17 de agosto e 30 de dezembro de 1937, integra a coletânea Welten [Mundos], publicado postumamente na antologia poética Welten, Berlin, Suhrkamp, 1947.
Dá-me a tua mão, a mão querida, e vem comigo;
pois queremos nos afastar das pessoas.
São mesquinhas e más, e sua mesquinha maldade nos odeia e tortura.
Seus olhos pérfidos se esgueiram pelo nosso rosto, e
seus ouvidos ávidos tateiam a palavra da nossa boca.
Coletam meimendro…
Fujamos
Para os campos sonhadores que, gentis, com flores e grama consolam nossos pés andarilhos,
para o rio que, paciente, carrega em seu dorso imponentes fardos, pesados navios repletos de bens,
para os animais da floresta, que não maldizem.
Vem.
Bruma outonal encobre e umedece o musgo com pálido brilho de esmeralda.
Folhas de faia rolam, tesouro de moedas de ouro e bronze.
Diante dos nossos passos, rubra chama trêmula, salta o esquilo.
Amieiros pretos se contorcem no lago contra o brilho acobreado do entardecer.
Vem.
Pois o sol desceu e se abrigou na sua caverna, e seu hálito quente, avermelhado, esvanece.
Uma abóbada se abre.
Sob seus arcos azul-cinzentos, entre colunas coroadas
das árvores estará o anjo,
Alto e esguio, sem asas.
Seu semblante é dor.
E seu traje tem a palidez glacial das estrelas que brilham
nas noites de inverno.
Ele que é,
que não fala, não deve, só é,
que não conhece maldição, nem traz benção, e que não peregrina até as cidades, para o que morre:
ele não nos vê
em seu silêncio prateado.
Mas nós o vemos,
porque somos dois, e desamparados.
Talvez
caia uma folha marrom, murcha, em seu ombro,
resvale;
recolhemo-la e guardemo-la, antes de seguir.
Vem, meu amigo, vem comigo.
A escada na casa do meu pai é escura, sinuosa,
e estreita, e os degraus são gastos;
mas agora é a casa da órfã, e pessoas estranhas moram ali.
Leva-me embora.
A velha chave enferrujada do portão mal obedece às minhas mãos fracas.
Agora ele se fecha, rangendo.
Olha para mim na escuridão, tu, a partir de hoje, a minha pátria.
Pois teus braços construirão muros protetores para mim.
E teu coração será minha alcova e o teu olho, minha janela, através da qual brilha a manhã.
E a fronte se ergue, quando caminhas.
Tu és minha casa em todas as ruas do mundo, em cada côncavo, em cada colina.
Tu, meu teto, arquejarás comigo sob o sol ardente, estremecerás comigo quando a tempestade de neve chicotear.
Passaremos sede e fome, juntos resistiremos,
juntos, um dia, sucumbiremos à beira do caminho empoeirado e choraremos…
Tradução: Kristina Michahelles
O anjo na floresta (Der Engel im Walde) – Há duas versões, de 1933 e 1937, integra a coletânea “A palavra dos mudos” (Das Wort der Stummen), publicado postumamente na antologia poética Welten, Berlim, Suhrkamp, 1947.
Eis, soltaram os foguetes,
e aos milhares as centelhas soltas, ainda
suspensas estrelinhas no céu escuro.
A noite é longa.
Me apoio na árvore e volto os pensamentos ao céu,
revejo os finos pingos de ouro
subir bailando do tanque, pender gotejando do alto.
Claro é meu chapéu, leve é meu vestido; sinto frio.
Pálidos florescem os crisântemos, quer ondas
espargissem em sete fontes rosadas.
Me acerco do banco, espero, encolhida.
Encolhe-se a serpente, silva em salto
e dá o bote com a língua ardente.
Não aqueço-me as mãos geladas.
Em preto e púrpura subiu um espalmado
esparramando-se em prata sobre os telhados.
Meus olhos se cansam, mas sob as pestanas
gira ainda com canto suave a rota do sol,
e anéis verdes fluem das lutas afogueadas.
Há tempos explodiram os fogos.
Ao longe soam doze badaladas.
Retorno pra casa, os pés me arrastam.
Você não vem mais.
Tradução: Maria Aparecida Heidermann Barbosa
Das große Feuerwerk, publicado no volume Gedichte, pela Editora Egon Fleischel & Co., Berlim, 1917 e em Früher Zyklus III (ca. 1920).
Oh coração! Oh fruto! Oh tempo! Oh vontade!
Como amadureceram serenos!
Como a mão da quietude estival
Os afagou com o fulgor da pintura solar,
Como parecem suaves em tez amarelada
e a calidez cintilante germina avermelhada
e ornamenta o banquete eterno.
Pois vocês mesmos são nutrição e morte.
Essa é, porém, a razão de seu brilho,
sopro e raio consigo aninhados
no cerne, semente
cintilante e castanha.
As faces sem lágrimas de chuva
se voltam sorrindo à luz.
E fruem a fermentação dos sumos
que de vocês doces solfejos entoam.
Mas a tudo o que não pereceu,
já antes de colheita e poda na vindima,
não secou nas garras de fogo
ou apodreceu em viscosa umidade,
desdenhada pela mão na colheita,
o vento atirasse ao torrão,
ela própria se semeando, se colhendo,
mãe sempre sendo e criança.
Tradução: Maria Aparecida Heidermann Barbosa
Apfel, publicado no volume Poemas (Gedichte), pela Editora Egon Fleischel & Co., Berlim, 1917.