Obra
Welten, 1947
Das lyrische Werk, 1955
Susanna, 1959
Tag- und Tierträume, 1963
Eine jüdische Mutter, 1965
Die Kerze von Arras, 1968
Briefe an die Schwester Hilde , 1970
Das Wort der Stummen. Nachgelassene Gedichte, 1978
Frühe Gedichte (1917-22), 1980
Das Wort der Stummen, (1933) 1980
Weibliches Bildnis, 1987
Das lyrische Werk, 1987
Sämtliche Gedichte, 1987
Susanna, 1993
Nacht, 1994
Briefe, 1997
Das lyrische Werk [Poesias completas] — Wallstein Verlag, 2010
(edição crítica comentada em 3 volumes)
Tinha imaginado minha tarefa muito mais difícil. Esperava um ser caprichoso, facilmente irritável, e pensara que teria de lutar contra rejeição e impertinência. Mas agora eu devia tomar conta de uma criança crescida e afável. Duvidei da perspicácia do tutor e desaprovei sua opinião de que a órfã não precisava de seres humanos como amigos. Provavelmente ele negava a solidão dela porque de outro modo esse pensamento perturbava o conforto de sua vida de solteiro. Isso foi nos primeiros dias; mas então vi: ele tinha razão e eu havia me enganado. Susanna não precisava de mim. Ela me aceitou e me integrou no seu mundo, uma vez que eu simplesmente estava lá, mas não tinha desejado a minha presença e mal teria sentido a minha falta; do mesmo modo como conversava comigo, ela conversaria com a cadela, as conchas, a turmalina e com sua águia-pescadora ou também com a aranha, como Cristiano II na torre.
O Cristiano da Dinamarca e a aranha encontramos em um calhamaço que Susanna levou do armário da sala de estar para o seu quarto lá em cima. Pois nas noites compridas tricotávamos e bordávamos, costurávamos, remendávamos e líamos revezando-nos. Susanna adorava os livros, mas tinha um jeito particular de lidar com eles. Começar do começo e terminar pelo fim não lhe agradava. Para histórias longas, desenrolamentos, enredo e desfecho não tinha sensibilidade. Primeiro, tentamos com um romance; o que permaneceu em vão: justamente o suspense, a ambiguidade, o retardamento de uma decisão a cansavam; a coesão do todo lhe escapava.
– Os ciganos não aparecem mais de jeito nenhum? Sempre a mesma coisa, Traudel, Hans e o conflito de fronteiras. Isso é chato.
Assim, eu escolhia geralmente só narrativas curtas, contos de fadas e lendas, trechos de relatos de viagem, de livros de História e História Natural, com frequência também da Bíblia, como por exemplo:
– Fina disse: todo livro tem de ser lido do começo. Só a Bíblia que não, que pode ser aberta onde se quiser; nela é tudo começo e fim, porque é a palavra de Deus.
Fina era a babá, Seraphine.
Uma noite sentamos no meu quarto e Susanna narrou seu conto inventado por ela mesma. Era uma madrasta malvada que maltratava sua pobre enteada, mas a menina tinha seu cão branco que espalhava seus pelos longos e finos cobrindo– a completamente; coberta de pelos tornava– se irreconhecível e também um animal. E só bastava dizer sempre:
Zoe, Zoe, sacode-se assim
espalha brancos flocos sobre mim!
Susanna levantou-se de repente, apagou a luz e abriu a cortina da janela.
– Olha que lindo! Vamos passear, tá? Hoje passamos o dia todo dentro de casa. Vamos levar a Zoe junto.
No início me opus; um passeio de madrugada não era costume e o céu articulava geada. Escapulimos de mansinho como ladrões para o jardim. Pois justamente Milda Morawe não devia ver pela porta da cozinha; ela teria desaprovado nosso desejo de passear.
A abóbada celeste era pedra sombria, pura dureza sem compaixão. Incontáveis estrelas petrificavam– se em cristais de gelo relumbrantes, estilhaçados. A lua brilhava prateada e fria. A neve recém– caída congelara– se formando uma crosta com um forte alumbre azulado. Diante de sua brancura, o animal empalideceu, tremeu tornando– se sombra, desaparecendo e errando na escuridão dos campos.
Nossas botas de pele afundavam. Susanna perguntou:
– Sabe onde estamos pisando? Sabe o que é isso?
– Neve, neve recém-caída.
– Não, o que estamos sentindo é areia do mar. Ela reluz branca porque o clarão da lua chega até nós atingindo a profundidade. Pois estamos indo para o fundo do mar.
– Mas como vamos chegar até lá?
– Nós nos afogamos. Partimos em um navio bonito; ele bateu num penhasco e afundou; lá está ele. Lá estão todos.
Ela apontou para a casa que ficara para trás, longe, para a cidade que lá estava como um tenebroso cemitério de navios, algumas torres se elevavam como chaminés de um vapor, outras como pontas dos mastros.
– Essa coisa fria que passa pelo nosso rosto é água. E você vê o que está nadando ali?
Ela puxou pela minha manga como se tivesse sido realmente estimulada por algo estranho, maravilhoso.
– Tem uma cabeça de peixe longa e pontuda, é totalmente coberto de um cabelo cheio, incolor, como algas esbranquiçadas; mas não são algas nem cabelos, são fios táteis. É uma foca marítima.
– Foca marinha eu conheço, foca marítima não.
– Não, também não consta em nenhum livro; não foi descoberta nem descrita por ninguém, pois ela vive nas profundezas e não pode ir para cima. Se subir e for atingida por um raio de sol, logo morre, se decompõe, apodrece e fede – horrível! Ela estremeceu.
– Só os mortos podem vê-la. Ela é um animal totalmente puro, totalmente delicado, quando tocado, é como uma água-viva mansa.
– Pare com isso, Susanna. Vamos voltar, senão nós duas vamos acabar acreditando nas suas histórias.
– Eu não posso voltar. Meu navio é só ruínas e minhas roupas estão se desfazendo e caindo; mas não estou nua… estou flutuando assim… em um véu d’água… E o rei das águas vem, me vê e me acha bonita. Você sabe como é o rei das águas? Seu peito é totalmente peludo de algas verde-musgo, e sua cabeça tão lisa e redondamente polida como as pedras da praia. E como base da sua coroa ele carrega dois peixinhos prateados que mordem um o rabo do outro.
– De onde você sabe tudo isso…?
– De Deus. Não se pode ouvi-lo, não se pode vê-lo; mas ele faz com que se saiba tudo. Ele também fez o rei das águas assim como as gentes.
– Mas não tem nada disso na Bíblia.
– Tanto faz. Fina disse que mesmo que não esteja citado na Bíblia, é de Deus. Tudo que foi criado é de Deus. Pois o mal não pode criar nada, só pode estragar tudo e sempre. Por isso, se uma criatura simplesmente está aí, ela vem de Deus.
– Mas o rei das águas está mesmo aí?
– Você é burra.
Eu ri.
– E você não é muito gentil.
– Vamos para casa. Quero ir dormir e esperar pelo rei das águas. Ele só vem à noite.
– Mulher de contos de fadas…
– Isto não é conto de fadas, disse, séria.
Fomos para casa.
Enquanto me esforçava para abrir o cadeado da cancela, Zoe andava e farejava pra lá e pra cá no buraco do lixo. Milda Morawe estava parada no escuro com seu cesto de lixo, como a imagem petrificada da repreensão.
Tinha caído uma cadeira ou algo de madeira batido no assoalho. Com isso acordei. Me levantei na cama e fiquei escutando. Estava tudo em silêncio. Pode ser que eu tenha me enganado. Talvez um monte de neve tenha escorregado da cumeeira. Eu ouvia. Tudo continuava em silêncio. Me joguei de volta na cama e me estiquei de uma maneira gostosa, já queria tornar a dormir lá! Um tatear… O que foi isso? Milda Morawe não foi. Ela teria descido com um pisar mais pesado e modos mais rudes da sua água– furtada para a cozinha. Foi bem silencioso, de mansinho…. ladrões? Me apavorei. O cachorro não reagiu. Mas ele nunca late… Me levantei no escuro, tateei procurando o meu penhoar e saí para o corredor.
E vi, a porta do quarto de Susanna estava bem aberta…
Susanna estava lá embaixo. O que fazia? Sonambulando pelos aposentos… Ela acordara, estava ensandecida e à procura do rei das águas, do seu espírito… Atrás de mim, tremulava na noite um pavor da demente, um medo mordaz. Queria voltar, me enfiar no quarto, passar a chave duas vezes.
Deveria ter acendido a luz. Mas fiquei como que hipnotizada…
Depois de alguns instantes me acalmei, me recompus e desci as escadas cuidadosamente. Embaixo ouvi uma conversa. A voz de Susanna meio alta e a de um homem sussurrando. Senti meu coração. Fui à cozinha, a porta se entreabriu e fixei o olhar…
O frio soprava em minha direção. A janela estava escancarada. E sobre o parapeito estava Susanna de pé, segurando a grade com as mãos, pressionava o corpo contra as barras empurrando-o para fora. Seus cabelos pretos respiravam como um animal. Estava parada com sua longa camisola de seda que brilhava como pérola branca sob a lua de prata gelada. Com os pés nus, de pé, tremia, ria baixo e seduzia.
O homem estava mais embaixo, no jardim. Ela o tapava e só quando se agachava é que eu podia entrever um pedaço do seu chapéu. Ele falava de modo abafado; mas a calada da noite permitia que toda palavra chegasse a mim.
Era uma vaga súplica:
– Susanna!…
– O quê?
– Eu te peço… eu te peço: vai!
Ela ria.
– Mas eu não quero.
– Você está com frio e vai se resfriar.
– Eu não estou com o menor frio. Mas você está tremendo de frio e gostaria de ir para casa.
– Susanna…, mas você sabe…. por que você está debochando de mim?
– Porque você é mau e me manda embora. E, portanto, eu vim para te alegrar.
– Para me alegrar… pega o sobretudo… por favor… com essa camisola fininha…
– Você não gosta de me ver assim?
– Você me martiriza.
– Você não deve se martirizar. Já vou vestir o sobretudo.
– Você não está mesmo com frio?
– Não.
– Então… espera… um momento, espera ainda… por favor…
Um risinho.
– Você não sabe o que quer.
– Oh, eu sei… eu sei o que quero… Susanna! O nome era como o riso de alguém sufocando.
– O quê?
– Abaixa… preciso te dizer no ouvido o que eu quero…
Ela se inclinou um pouco.
– Eu… oh, eu… estou morrendo… ardendo assim… minhas roupas estão queimando… quero arrancar tudo de mim… diante de você… nesta noite de inverno… você… ah, você…
Ela esticou o braço através das barras.
– Vem.
Me apavorei. Senti meu suor saindo pelos poros. E fiquei de pé com o olhar fixo…
– Minha pedra preciosa… é isso que você é: minha pedra preciosa… meu profundo vermelho… rubi…
– Eu sou só sangue e ardor… Susanna…
Ela se agachou, ajoelhou-se e fez alguma coisa; mas eu não podia ver o quê.
– O cachecol grosso temos que tirar… e o colarinho… espera… o botão… assim…
Silêncio.
– Você gosta de fazer isso, Susanna? Gosta de acariciar a penugem do meu peito?
– Mas isso não é pelo. São algas. Algas verde-musgo, pois você é um ser marinho. Mas ninguém sabe, porque você usa roupas como pessoas. Ninguém sabe. Só eu.
– Só você.
– O que você está fazendo?
– Sua mão… é como um bichinho pequeno e quente sobre o meu peito… preciso beijá-la…
– É, minha mão está quente; só meus pés estão ficando frios.
– Você veio descalça?
– Não. Meu chinelo está em algum lugar na cozinha. Não consigo mais ficar de joelhos. Fecha o colarinho… direito… ninguém pode saber o que você é, ninguém…
– Me dá o seu pé… quero esquentá-lo, cobri-lo com as minhas mãos e meus lábios… seus pés são um encanto, Susanna… tão brancos…
– Todas as mulheres não têm pés brancos assim?
– Não todas… Ah, você… queria te pegar… inteira… não só os teus pés, te cobrir completamente… ah… vai embora…
– Sim, estou com frio…
– Você está com frio? Vai, meu amor… vai
Ela acocorou-se, encolheu-se e seu rosto procurava ao longo da grade. E eu vi em um instante a cabeça de um e de outro formando uma só…
Excerto do terceiro capítulo de Susanna 1940). in: Das leere Haus. Prosa jüdischer Dichter. Editado por Karl Otten, 293-336. Stuttgart, 1959; posteriormente, editado por Thomas Sparr. Frankfurt a. M., 1993.
Tradução de Simone Pereira Goncalves (coordenadora da agência Transpalavras de Berlim), publicada pela primeira vez em 2012, na revista Cadernos de Literatura em Tradução da USP.
Nota da Tradutora:
“Aqui morava Gertrud Kolmar, nome civil Chodziesner, nascida em 1894, deportada em 1943, assassinada em Auschwitz”. Essa inscrição se encontra em uma das inúmeras plaquinhas espalhadas por Berlim, revestidas de latão e incrustadas nas calçadas diante das antigas moradias das vítimas do nazismo. A placa memorial, na tradução literal “pedra-tropeço”, não escapa à vista do pedestre que passar pela Münchener Straße 18a, no bairro Schöneberg.
Gertrud Kolmar que escolheu o nome alemão da cidade Chodzież, na fronteira com a Polônia, como pseudônimo, cresceu no ambiente prussiano de judeus assimilados, o qual seu primo Walter Benjamin imortalizou em Infância em Berlim por volta de 1900. O conto “Susanna” foi escrito em um apartamento em Berlim, de 29 de dezembro de 1939 a 13 de fevereiro de 1940, época de completa privação de direitos e crescente ameaça. Esse foi o último texto da autora.
A história é contada rapidamente: a narradora personagem vai trabalhar como preceptora de uma garota com doenças psíquicas, em uma cidadezinha no leste alemão, atividade exercida também pela autora, mais conhecida como poeta, que cuidava da educação de crianças com deficiência. A ação se desenrola nos diálogos entre as duas, marcados pela diferença das respectivas interpretações da realidade como também da linguagem, uma expansiva e fantástica, mas ao mesmo tempo precisa, a outra limitada, prosaica, racional. A biografia de Gertrud Kolmar é inseparável deste conto, cuja envelhecida preceptora anos mais tarde se recordaria da menina Susanna, enquanto suas malas esperavam pelo segundo affidavit de Massachusetts. O affidavit era uma declaração por escrito sob juramento de um cidadão americano, parente consanguíneo, responsabilizando-se financeiramente por um imigrante. Judeus que queriam sair da Alemanha às vésperas do Holocausto tinham de apresentar esse documento nos Consulados americanos. Este texto lúcido em sua dupla perspectiva da realidade reúne em si um documento histórico e poético ao mesmo tempo.
A tradução deste excerto do terceiro capítulo de Susanna foi publicada pela primeira vez em 2012, na revista Cadernos de Literatura em Tradução da USP. Revendo a tradução comentada uma década depois, senti a necessidade de fazer algumas alterações no estilo. Eliminei um gerúndio, acrescentei um subjuntivo, mudei poucas palavras. Por razões óbvias, eliminei o verbo judiar, substituindo-o por maltratar.
Na intenção de manter a familiaridade e informalidade da linguagem de duas pessoas que se tuteiam em alemão, traduzi os diálogos para uma das variantes do português coloquial do Brasil, infringindo regras da norma culta com a mistura dos pronomes da segunda e terceira pessoa. Nesta tradução revisitada, optei pela grafia mais próxima da oralidade na locução pra lá e pra cá e mantive minha invenção, água-viva mansa, já que em português, a associação com água-viva é em geral de mal-estar e em alemão a imagem no texto é sensorial e agradável, evocando na memória do leitor as águas-vivas do Mar Báltico que não queimam.